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Coluna Linguística - Quando a língua não vem de fora, a mente cria

*Por Gabriel Pinheiro

Cassilândia Notícias - 12 de junho de 2025 - 06:30

Coluna Linguística - Quando a língua não vem de fora, a mente cria

Imagine uma criança crescendo numa casa silenciosa, onde ninguém fala com ela. Nada de “bom dia”, “olha o aviãozinho”, nem mesmo um grito de “desce daí, menino!”. Silêncio absoluto. O que acontece com essa criança? A resposta é um tanto desconcertante: ela não aprende a falar.

Não é que falte inteligência, nem que o cérebro dela esteja avariado. Simplesmente, a janela de oportunidade para a linguagem vai se fechando, e quando fecha, não tem puxador do lado de fora. Mesmo depois de ser exposta à uma língua, mais tarde, essa criança pode aprender palavras, repetir frases, até se virar no cotidiano. Mas construir frases novas, entender nuances, usar a linguagem com fluência, isso não acontece. Porque a língua, ao contrário do que parece, não é apenas um conjunto de palavras decoradas, mas uma arquitetura mental complexa que precisa ser ativada desde cedo.

Isso já foi observado com crianças que cresceram em isolamento extremo, como alguns casos trágicos em que elas foram privadas de contato humano por anos. Quando finalmente resgatadas, estavam além do ponto de virada. Aprenderam gestos, palavras soltas, até empatia. Mas não desenvolveram uma língua, no sentido pleno da coisa. O “sistema” simplesmente não se ativou.

Por outro lado, crianças surdas que crescem entre adultos ouvintes que não sabem Libras am por um problema parecido. Se não recebem uma língua de sinais nos primeiros anos de vida, mesmo que inventem gestos para se comunicar, esses gestos não têm a gramática rica e produtiva de uma língua de sinais verdade. A mente quer linguagem e, se não a encontra, tenta improvisar. Mas improvisar não basta.

Agora vem a parte mais fascinante: quando essas crianças surdas são agrupadas com outras que também não conhecem uma língua formal, algo incrível acontece: elas inventam uma. Sim, do zero. Com estrutura, regras, tempos verbais e até marcações de sujeito e objeto. Não, não é uma linguagem aleatória. Ela respeita padrões que parecem brotar de dentro, como se o cérebro dissesse: “Bom, já que ninguém me deu um idioma, vou criar o meu, mas com o molde que tenho aqui.”

A situação apresentada acima pode ser evidenciada, por exemplo, nas chamadas “línguas crioulas”. Essas línguas funcionam como qualquer outro idioma rico e produtivo, que crescemos falando, a diferença está no fato de que ela simplesmente surgiu a partir de formas menos produtivas, ou menos ricas, de linguagem, como os chamados “pidgins”.

Para uma noção melhor do que é um pidgin, devemos viajar no tempo para os períodos coloniais (séculos 16 a 19). Os colonizadores (portugueses, espanhóis, ingleses, etc.) precisavam estabelecer uma forma de comunicação com os povos nativos da região, de modo a estabelecer meios de diplomacia e desenvolver um comércio local. Assim surgem os pidgins, que são formas mais ou menos rústicas de comunicação, criadas quase sempre nos moldes da língua do colonizador.

A evidência de que o ser humano cria sistemas linguísticos naturalmente aponta para uma conclusão desconcertante: a língua não é um produto que que nos é entregue quando nascemos; é uma capacidade que carregamos por dentro e que precisa de gatilhos para florescer, isto é, estímulos exteriores. Quando não existem esses estímulos, a flor não desabrocha. Quando eles existem, mas são escassos ou disformes, o cérebro tenta compensar, mas respeitando certos limites.

Nesse sentido, imagine como se nossa mente fosse um forno pré-aquecido para assar linguagem: precisa da massa no tempo certo. Se a massa não chega, o forno esfria. Se chega tarde, assa mal. Se chega cedo e certinha, ah, aí sai um pão quentinho, com aroma de fala humana.

Mais do que nunca, isso mostra que falar é menos sobre repetir o que se ouve e mais sobre responder a uma expectativa que está lá dentro desde o começo.

A mente não espera ser ensinada. Ela espera ser despertada.

*Gabriel Pinheiro é professor, psicopedagogo e mestrando em Linguística pela Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp

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